O machete de André Mehmari tem gosto de ‘quero mais’
- Tiago Godoy
- 19 de dez. de 2024
- 2 min de leitura
por Irineu Franco Perpetuo | Revista Concerto
Em uma criação primorosa, Mehmari conseguiu transportar para o código rigidamente cifrado da partitura “erudita” a organicidade e a gestual espontaneidade do jogo de citações e da transgressão de limites estéticos que constituem o encanto de sua atuação como pianista “popular”

A fina ironia do Bruxo do Cosme Velho encontrou sua mais deliciosa tradução musical em André Mehmari. Primeira ópera do compositor, O machete é divertida de ver, gostosa de ouvir – e ainda nos brinda com uma reflexão sobre as fronteiras entre o popular e o erudito.
Em 1883, quando Ernesto Nazareth (1863-1934) ainda estava dando os primeiros passos na carreira, Machado de Assis redigiu um de seus contos mais renomados: Um homem célebre, que conta a história de Pestana, “famoso autor de tantas polcas amadas”, que repudia suas peças populares e esgota-se, inutilmente, no “esforço de compor alguma cousa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann”. Algo como uma premonição do que ocorreria com o próprio Nazareth, que, ao conhecer Arthur Rubinstein, quis tocar Chopin para o pianista polonês, em vez de suas próprias obras, e exclamou aos prantos, publicamente, em recital de Guiomar Novaes, que gostaria de ter sido a pianista paulista.
Pois bem. Mehmari garimpou um conto anterior e menos conhecido de Machado: O machete, de 1878, cujo protagonista, Inácio Ramos, violoncelista, perde a mulher, Carlota para Barbosa, que a seduz tocando algo que “não era Weber nem Mozart; era uma cantiga do tempo e da rua, obra de ocasião”. Seu instrumento? O machete, que o dicionário Houaiss define como “instrumento de origem portuguesa, maior que o cavaquinho e menor que a viola, com quatro ou cinco cordas duplas e dedilháveis, afinadas em quintas”.
Mehmari, embora seja um dos mais requisitados compositores brasileiros do terceiro milênio, volta e meia tem de se defrontar com filhotes extemporâneos de Adorno a patrulhá-lo pelo “impuro” elemento popular em sua música
O tema tem profundas ressonâncias na trajetória de Mehmari, que, embora seja um dos mais requisitados compositores brasileiros do terceiro milênio, volta e meia tem de se defrontar com filhotes extemporâneos de Adorno a patrulhá-lo pelo “impuro” elemento popular em sua música – infindável repetição das vaias ao Concerto carioca nº 2, de Radamés Gnattali, no Festival da Guanabara, em 1969.
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